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A Cara da Democracia no Brasil e na Argentina


Leonardo Avritzer


Brasil e Argentina têm trajetórias distintas no período que se seguiu aos regimes autoritários nos dois países. Estas diferentes trajetórias estão ligadas a dois modelos distintos: no caso do Brasil, o modelo que se seguiu ao autoritarismo foi de um amplo pacto político e social com o objetivo de estabelecer uma trajetória política comum (Alves, 1985; Abranches, 1988; Avritzer, 2002). A Assembleia Nacional Constituinte com o papel desempenhado pelo PMDB no seu interior assegurou dois elementos que fariam parte da nova tradição democrática brasileira: um consenso relativo sobre a ampliação das políticas sociais e um reconhecimento de uma mudança de trajetória política com os governos de centro e de esquerda conquistando apoio para as suas políticas no Congresso. Foi este elemento que permitiu que não houvesse contestação de resultados eleitorais entre 1989 e 2014 no Brasil. Mas, é preciso apontar outro elemento bastante problemático da tradição brasileira, a ausência de punições relativas às violações dos direitos humanos durante o autoritarismo.


Já na Argentina vemos uma configuração diferente entre direitos humanos e competitividade política. A primeira eleição democrática na Argentina implicou, do ponto de vista da competição política, em uma ruptura com o padrão anterior devido à derrota dos peronistas. No entanto, a partir daí houve uma trajetória de não completude dos mandatos eleitorais nos governos não peronistas. Alfonsin não completou o seu assim como De la Rua, estabelecendo uma tradição de não completude por parte dos presidentes não peronistas. No entanto, se o elemento analítico apontado acima é relativamente favorável ao Brasil até 2014, no que diz respeito aos direitos humanos a Argentina tem um padrão muito superior em relação às punições e violações desses direitos. Os julgamentos de violações dos direitos humanos iniciados no governo Alfonsin tiveram diversos impactos na institucionalidade legal, desde as condenações dos dirigentes das juntas militares à adesão da Argentina aos pactos internacionais de direitos humanos que foram integrados à sua constituição em 1994 (Brysk, Roeniger e Schjneider, 2000; Abramovich, 2001).


Assim, é possível pensar uma tipologia da democracia nos dois países a partir do contraste estabelecido acima: no caso da Argentina se sobressai na construção democrática a dimensão liberal de direitos civis ao passo que no Brasil se sobressai a dimensão democrático competitiva. Neste momento, no qual as duas democracias estão em crise é importante utilizar os dois padrões para entender melhor a relação entre o civismo e a participação em novas democracias.


A reconstrução dos valores democráticos no Brasil e na Argentina


Brasil e Argentina apresentam fortes variações no que diz respeito a satisfação dos indivíduos com a democracia. Os dados abaixo mostram algumas regularidades de longo prazo na comparação entre os dois países. Em primeiro lugar, ele mostra um patamar inicial de preferência ou confiança na democracia na Argentina superior ao existente no Brasil no início dos anos 90. No caso da Argentina, a preferência pela democracia oscila em torno dos 60 pontos, enquanto no caso brasileiro ela fica no patamar de 40 pontos.


Gráfico 1: Série Histórica da preferência pela democracia no Brasil e na Argentina


Fonte: Latinobarometro (1995-2017), A Cara da Democracia no Brasil (2018), La Cara de la Democracia en Argetina (2018).


Há uma segunda questão importante mostrada pelo gráfico abaixo e que merece consideração: a magnitude dos picos negativos no caso brasileiro. A Argentina parece ter valores democráticos mais altos e mais estáveis que o Brasil no longo prazo. Além disso, nos momentos de retração no apoio à democracia a retração parece ser mais acentuada no caso brasileiro. Mesmo no período entre 1998-2002, que terminou com a assim chamada crise do “corralito”, a queda na preferência pela democracia na Argentina foi de aproximadamente 10 pontos e no Brasil a retração ficou em 20 pontos. Percebemos o mesmo neste momento com uma queda de 54% de preferência pela democracia alcançando a marca dos 32 pontos percentuais.


Um conjunto de questões se coloca para analisar estes dados. A primeira delas é como comparar a trajetória de criação de instituições democráticas nos dois países e onde localizar as diferenças? Em segundo lugar, a questão é como os cidadãos dos dois países entendem a tradição de direitos depois de um longo período nesta trajetória? Iremos proceder tanto analiticamente quanto através de dados comparados de survey para responder a estas duas questões.


A criação de instituições democráticas no Brasil e na Argentina (1983-1994)


Brasil e Argentina passaram por estratégias diferentes de construção democrática depois de experiências autoritárias diferentes. No caso do Brasil, tivemos um autoritarismo longo, de perfil tecno-burocrático com a questão da repressão política ocupando um lugar importante, mas secundário em relação às demais experiências do Cone Sul. O centro da proposta autoritária brasileira foi a intervenção semilegal realizada pelo regime autoritário na ordem política e nas estruturas de competição política. Os elementos mais importantes desta intervenção foram: suspensão de eleições presidenciais e de governadores, diversas suspensões do funcionamento do Congresso - as mais importantes ocorridas em 1969 e 1977. Além da intervenção no funcionamento institucional, o regime militar alterou estruturas legais como o habeas corpus e instituiu a medida provisória com validade a partir do dia da sua promulgação pelo poder executivo. Por fim, ele interferiu fortemente no funcionamento da polícia judiciária, criando o caldo de cultura para um processo de violência social que ainda não chegou ao fim. Já no caso da Argentina ocorreu uma suspensão completa do funcionamento das instituições democráticas com o regime autoritário governando por decreto (O`Donnell, 1982). O que mais diferenciou os dois países foi a forte trajetória de violação dos direitos humanos na Argentina, que levou a uma forte reorganização da sociedade com a nova hegemonia do movimento de direitos humanos.


As características do autoritarismo e o processo específico de redemocratização foram também diferentes no Brasil e na Argentina. No caso do Brasil, a elaboração de uma nova constituição foi decorrência da forma legal do autoritarismo que mesclou de forma definitiva uma tradição liberal legal com uma tradição liberal autoritária. A democratização brasileira se concentrou na nova constituição e na restauração das condições da competição política (Couto e Arantes, 2006). No entanto, o problema da restauração das regras não passou nem pela punição das violações de direitos humanos e nem por uma tentativa de desvincular as duas ordens legais, a democrática e a autoritária. Assim, a restauração democrática acabou passando pelo competivismo eleitoral. Já no caso Argentino se, em um primeiro momento o competivismo esteve subordinado ao peronismo, faz-se mister afirmar que a punição das violações de direitos humanos criou um caldo de cultura favorável para todos os direitos civis. A possibilidade de retorno dos militares na Argentina ou de re-legitimação dos militares parece ser hoje muito baixa, tal como mostram os dados abaixo sobre golpe no Brasil e na Argentina. Nos anos de 2018 e 2019 o INCT Instituto da Democracia realizoudois surveys, um no Brasil e um na Argentina sobre circunstâncias que justiçariam ruptura com a democracia, um golpe de estado ou renúncia. [1]


Gráfico 2: circunstâncias que justificariam golpe ou renúncia



A Argentina teve um regime autoritário sui generis devido a profundidade da sua ruptura com os direitos humanos e devido à forma de colapso através da qual se deu a transição que permitiu os julgamentos das violações de direitos humanos. Quando analisamos os dados comparados sobre confiança nas instituições políticas nos dois países percebemos que a forma da transição foi prenhe de consequências. As forças armadas no Brasil se situam no patamar superior de legitimidade o que lhes permitiu realizar um retorno semidemocrático [2] ao exercício do poder político no Brasil, ao passo que a legitimidade das forças armadas na Argentina permaneceu baixa no longo prazo. Mais de 60% dos brasileiros confiam nas Forças Armadas dado com pouca variação ao longo do tempo, ao passo que na Argentina apenas 34,73% da população confia nas forças armadas no país.



Gráfico 3: Confiança nas igrejas e nas forças armadas



Evidentemente que os dados comparativos entre os dois países nos levam a analisar retroativamente a sua trajetória democrática e a