Zen, Restraint, Patience
Lucio Rennó (UnB) e Leonardo Avritzer (UFMG)
Com as palavras acima, John Berkow, Presidente da Casa dos Comuns britânica, dava sequência a seu pedido de ordem, em sua voz grave e sotaque característico, tentando encaminhar as acaloradas discussões sobre o Brexit e o voto de não confiança na primeira-ministra.
Fala oportuna não só na Grã-Bretanha, mas em várias partes do mundo, onde a temperatura do debate político atingiu picos, flertando com pontos de ruptura. O caso extremo é a Venezuela, que há anos dança à beira do precipício e que já vive a violência e a insolvência política, com a falência completa do diálogo e o fechamento dos espaços de negociação pacífica. E com uma conclusão clara: onde não existe diálogo e a violência impera, a população paga a conta sob diversas formas, da insegurança geral à violência policial que impera nos territórios mais pobres das cidades brasileiras.
Uma palavra usada por Berkow, em particular, é muito cara à essência da democracia: restraint. Traduzido como comedimento, autodomínio ou autocontenção, esse é um conceito chave para o entendimento do que é democracia, segundo uma de suas principais vertentes teóricas. Infelizmente, caiu em desuso, tanto na discussão conceitual quanto da prática política. Cabe recuperá-lo.
Um preâmbulo: a democracia é um sistema de organização das questões públicas - de ordenamento do mundo da política - baseado na busca de decisões consensuais ou, ao menos, majoritárias, e que evita a arbitrária imposição de rumos para a população ou a partes dessa população - protege minorias a partir do pressuposto de que a oposição é constituída por indivíduos leais que um dia também irão governar. Assim, é entendida como um sistema baseado na decisão popular, através da escolha de representantes a quem é delegado o poder de escolha sobre temas públicos, em que os direitos individuais são protegidos por um conjunto de procedimentos que evitam a arbitrariedade e permitem amplo espaço para a deliberação. Essencial na democracia é a incerteza acerca dos resultados dos processos políticos e legais: nada é pré-definido ou pré-determinado. É possível afirmar que a única forma de produzir resultados incertos é através de procedimentos certos, públicos e transparentes. É a negociação baseada em valores e ideias e a avaliação de evidências que determina os resultados. Assim, a democracia é muito mais que a soberania dos resultados eleitorais. Ela é um sistema que compatibiliza resultados políticos com uma adesão geral a procedimentos e valores que constituem uma gramática das ações cotidianas da população e dos membros do sistema político.
Do ângulo eleitoral, a democracia deve ser entendida como o sistema em que partidos perdem eleições porque têm a expectativa de no futuro voltarem a ganhar. Na democracia, não se ganha sempre. Quando apenas um lado ganha, abre-se rapidamente caminho para várias deturpações do sistema - o populismo sendo o caminho mais imediato - e sua capacidade de representação dos interesses de todos, incluso das minorias e dos perdedores. Dessa forma, a alternância no poder é fundamental para a sobrevivência do regime, pois não só o oxigena, mas contribui para sua consolidação. Para isso, precisa-se entender a vitória e aceitar a derrota. No Brasil de hoje, nem os vencedores entendem o que significa governar que implica, antes de tudo, em sair do palanque e se considerar eleito por todos os cidadãos, e os vencidos tampouco sabem aceitar a derrota, não diminui-la e trabalhar para construir uma agenda alternativa. Assim, vencedores e vencidos retiram a legitimidade do sistema com a qual parecem ter pouca lealdade.
Entramos no conceito de restraint, de comedimento. Se a democracia é um sistema que tenta solucionar problemas equacionando posicionamentos divergentes por meio da negociação e não da imposição, há que se saber ceder e aceitar a derrota. Caso os vencedores se descolem do interesse popular, fatalmente serão punidos nas eleições e nos casos extremos serão contidos pelas instituições judiciais. Por fim, serão substituídos por novos eleitos. É justamente essa expectativa que faz com que os perdedores continuem no jogo, dentro das regras, ao invés de desertarem ou apelarem para soluções extra-institucionais - típica da retórica populista irresponsável, de esquerda e de direita. Portanto, em um regime democrático, o compromisso maior é com as regras democráticas, com as instituições da democracia, e em um segundo momento com as agendas partidárias e pessoais. Comedimento é justamente colocar o coletivo, a institucionalidade democrática, antes do ganho partidário e pessoal. Os resultados podem ser questionados dentro das regras do jogo e uma vez esgotadas as instâncias de apelação, o decidido deve ser acatado e respeitado como democrático.
Há indícios de que perdemos nosso comedimento e caminhamos para o desrespeito à ordenação democrática. Usam-se argumentos institucionais para priorizar os interesses pessoais/partidários. No fundo, os que ganham são sempre os mesmos: as elites partidárias, as elites econômicas e as elites corporativistas, que dizem representar os interesses sindicais dos trabalhadores e/ou de macro atores estatais, como são hoje as corporações judiciais. Corporações nunca perdem. Os que perdem são sempre os mesmos: os pobres, a classe média, principalmente a de renda mais baixa, e os desorganizados. A deserção - fuga do país, exílio - e a opção populista irresponsável - para os que não tem a alternativa anterior - são a consequência. Como a Venezuela deixa evidente, todos perdem se abrimos mão da democracia. Essa é uma lição importante para o Brasil.
A democracia é construída diariamente com comportamentos comedidos - zen, paciência, lealdade, não polarização - para se poder chegar a soluções que não excluam. Quando se perde, há que se respeitar o resultado e partir para a contestação dentro da ordem democrática, de forma enfática, mas sem questionar o caráter democrático das decisões tomadas, a não ser que elas passem dos limites da pluralidade democrática e de direitos. Lembrando sempre que as decisões de hoje podem ser revistas amanhã. Escolhas ruins morrem por natureza própria ou por pressão das instituições da democracia, como a imprensa. Há que se ter o comedimento, a paciência, o desprendimento de ego, para se aceitar a derrota de hoje, pois estas alimentam as vitórias de amanhã.